O RIO E O VIVER

Assenti à obrigação como se escolhesse. O Viver contou-me que deveria subir a correnteza do Tietê, e o ano ventava. Impossível exitar a Mãe Natureza; preparei-me. Usava, como testes, a piscina de Dona Ilda, a senhora do fim da rua. Era uma viúva sábia e bem vivida; após o treino, alimentava-me de café e histórias sobre quando tivera de ir contra o Paraíba do Sul, o de sua região. Nesses anos pré-televisão – quando a, recém nascida dos ventres ricos, Corrida Contra o Rio definia respeito e educação –, o rigor pautava o desafio: Donas Ildas eram raras na sociedade, conheciam o rio somente os mais respeitosos eremitas filosóficos. Já naqueles anos pré-Revolução – antes de o Homem olhar-se feito Viver –, os rios nutriam e acompanhavam a Humanidade como as raposas perseguem uma lebre do Ártico; éramos quase amigos.
Semanas passadas e cafés Ilda tomados, minha resistência aumentou e meu coração diminuiu. Quanto mais água me cercava, mais eu tentava não questionar o que estaria na nascente do rio, um segredo de Estado; saboreava o fim do sanduíche com muita fome. O Grande Tietê – como os locais chamavam nosso destino – ativava mais adrenalina a cada pôr do Sol, era a banalidade inconveniente: nunca poderia ir contra o fluxo natural a nós designado, não, mesmo que seja contra o fluxo natural de um ancião abiótico; não quero desapontar o Viver; éramos quase amigos.
Entre as rodas de participantes da Corrida, o que residia no final, na nascente, na sina, também se ocupava das conversas, das mentes e das preocupações. Afinal, a luta, a cobiça, a aspiração e a inspiração movia-nos para o desconhecido. Um fluxo de formigas que segue cegamente fraquejando, esfumaçando, levando para um fim o futuro das fatídicas colônias cansadas ausentadas pelo tempo e pela fome. Faziam-nos mudos e hesitantes consoante o grito interno e o silêncio dito. Eu e o sistema?; éramos quase amigos.
“Doentio”; cuspia como um exorcismo de sucesso. “Não nasci para nadar”; morava em conscientes e seus in/sub, principalmente nos meus. “O Viver preparou-me uma vida a ser por mim vivida, colocou-me em dívida, e nem se me videou o questionar se eu via nela alguma via de alegria”; engasgava minhas sinapses. A realidade conquistou mais um inimigo. Dona Ilda não era capaz de acabar com minhas dúvidas. Por que respirar senão para si? Por que nadar ao invés de correr? Por que retroalimentar uma tradição secular arbitrária? Por que ser gênese da história? Por que só rir se quero sorrir? Por que só ir? Por quê? Porque éramos quase amigos.
A um dia do Grande Tietê. Sapateava nos sentimentos. Titubeava em tantos tombos. O tambor metrônomo em passadas tilintantes. Dentro deste peito tonto trombado, o tinir. Também assíntota com os sentidos sentidos pelos troncos e roncos do Tibete. Tudo isso junto. E tudo junto de fúria. E ansiedade. E medo. E insegurança. E em si, desesperança. Era o amanhã que compunha o meu depois de amanhã, mesmo que tivesse o hoje como estudo. O rosto despertava nos mais próximos a dúvida acerca do meu bem-estar. Como bem estar sem nem desejar o além posso? Fúria, ansiedade, medo, insegurança e eu; éramos quase amigos.
Sobre a Corrida pouco lhes digo. Foi-se como se vai em todos os anos: ... . O inesperado, hei de amigar-me à verdade, apresentou-se no fim. Pedras remadas e águas jogadas em vão para, enfim, no fim, só assim, o Viver felicitar-me:


Meu caro, noto-te distante de tudo que a ti entreguei por durante todos estes incontáveis anos. Se tua infelicidade provém de um falso caráter tomado pelo Homem, perdoe ao primogênito de Mãe Natureza, quem te fala; fricativas usadas não foram por mim designadas, mas não, não te desativas a voz nem a vez. Estás hoje a pensar por minha vontade de ver-te a falar; vá, pois, e sinta o ar adentrar teus pulmões, o sangue escorrer tuas veias, as ondas penetrarem teus ouvidos. Vá e sinta-te vivo. Éramos mais do que quase amigos!


O Grande Tietê, compreendi, não passava de um pequeno desafio pessoal: o entendimento de que ser é mais do que viver, por mais que tentem convencer-me do contrário. A vida, contou-me o Viver, não é senão uma imposição exclusiva de obra natural; toda e qualquer outra sequela de dito ou de gesto mandatório depende de medida pessoal de discernimento. Às novas nascentes de humanidade caberão doutrinas, lutas, lutos, – o Homem, no fundo, olha-se feito Viver – mas quanto mais se aproximarem da Humanidade, mais se afastarão da filosofia eremita ensinada aos pré-Dona Ilda pela nobre e sábia Mãe Natureza. Os rios correrão da mesma maneira, quer sejam atravessados ou não; os rios sentir-se-ão vivos. “Éramos quase amigos”, dirão as águas aos vivos.
E o senhor, caro filho do presente? Pode-se dizer quase amigo de si? Entende-se como Ser e, por isso, como um pedaço do Viver?  Sente-se vivo? Não que um tietense – como os locais chamam os vencedores dessa batalha artificial – deseje saber, não, já me basta responder às minhas próprias perguntas; apenas sigo o fluxo do rio de minha vida. Somos, afinal, quase amigos.