INDIGÊNCIAS

Colagem e nanquim sobre papel.
Indigente salutar urbano, aquele que grita ajuda com o Português Errado e transparece aos raios solares.  É isso, oras; quer mais? Um envolvido por crosta de matéria passada, com trapos do presente recusados e regrados. Íntimo do piche e do asfalto, das rochas que sustentam a cidade geométrica. E ainda dizem que há gente simétrica. Ele nem tenta, pois a pele descara a idade e os olhos gritam cansaço; afinal, submeteu-se aos prazeres terrenos em troca de um ilustre futuro de dedicação, comprometimento e entendimento. Um culpado. Culpado por cobrir-se inteiramente da sociedade com seu manto mais surrado que seu estômago; por humilhar-se de joelhos no concreto fervente da rua granulado com pedras e bactérias que entrarão em seu corpo incapaz de proteger-se de si próprio; por virar as costas para a fácil vida imposta a ele, composta por ele e suposta dele.
Mamãe gosta que eu pense assim… Ela não sorri quando peno; ela saci quando aceno. Mamãe fraqueja quando cruza olhares com ele. É frequente; a casa dele é nosso bairro; e a vida dele é nosso barro. Papai, por outro lado, vê nele um brilho, que reina no fundo da alma camuflada pelas falas e gestos inimigos; sempre bom dia aqui, bom dia ali. Ensinou-me papai que o tal do Indigente era um homem livre, mas que a liberdade tem um preço; o Indigente urbano, por exemplo, destranca as correntes que o prendem ao mundo, mas sacrifica a certeza de comer todos os dias. E aqui explica-se o restante: salutar à estrutura, que finge ser necessária para o bem-estar; sem emprego? um livre sem comida - e o alimento que move as espécies na evolução e no desenvolvimento secular... Não pode, então, desacorrentar-se, dizem-me.
Aprendizado meu provém do antagonismo familiar. Aprendi que mamãe e papai se odeiam e que estão juntos por mim. Aprendi que indiretamente sou a infelicidade deles, sou o laço incômodo que ata uma relação já gasta. Aprendi que sou a corrente deles; seriam indigentes se não por mim, seriam a indigência casual, tão banal que nem um vulto vê nossos olhos: a do amor desfeito ou, como outros preferem, amor perfeito. Essa, aprendi muito bem, começa com a esperança. Ela guia um caminho dourado que ruma à glória, à paz e à serenidade íntima. O labirinto tortuoso que encobre o trajeto, entretanto, impede que a massa de recém casados encontrem o final colorido e, ao invés disso, leva-a para angustiar e para aperfeiçoar a capacidade de se desculpar. Uma bênção não substitui anos de calma e entendimento, e essa é a essência que saiu do frasco da relação antagônica familiar, há anos fechado. Aprendi isso com meus pais, suponho eu.
Suponho por não dominar as artes mentais do saber. Tanto dizem “descobri isso; já sei daquilo” que a realidade até veste a capa da facilidade. Comigo, infelizmente, não funciona no mesmo jogo. A certeza dos fatos não cabe a mim; quem raios sou eu, aliás? Não sou, afinal, mais um indigente? Não somos todos indigentes? Donos singulares de indigências raras e particulares, mas que, como um todo, compõem a rede de indiferentes do mundo. Alguns indigenciam a saúde, gastam-se da juventude e gozam dela; outros, a felicidade, queimam-se nela e afogam-na; e há aqueles que se esquecem de que cada frequência sonora, cada sabor, cada cheiro, cada toque cria um universo totalmente diferente, mas que, ao mesmo tempo, despencam no mesmo buraco.
Será que o sol levanta por nós, da forma como nos contam? Não somos mais animais indigentes revoltados com o mundo e com as dúvidas que sempre permearão as mentes? Não cantamos no mesmo tom da mata? Não sei, apenas suponho. Como disse, meu aprendizado é incerto, é tudo no mundo. Talho em folha de ouro, no entanto, a suposição da minha vida, aquela que circunda minhas crenças e belezas: A neblina, na verdade, é produção humana; nada impede nossa visão total. Nada senão o Indulgente salutar urbano.